CORPO CYBORG E O DISPOSITIVO DAS NOVAS TECNOLOGIAS
A atual aceleração tecnológica, impulsionada por desenvolvimentos científicos-tecnológicos mais recentes em campos tão diversos tem propiciado cenários inusitados no que concerne às possibilidades de transformação tecnológica do corpo.
A contínua “mecanização do humano” e a intensa vitalização das máquinas “ e sua integração pela cibernética transgride, senão mesmo apaga as fronteiras do orgânico e do maquínico, do vivo e do não-vivo, do humano e da máquina. Cada vez mais, a tecnologia investe no biológico e a biologia invade o mundo das máquinas. As fronteiras metafísicas fixadas pelo humanismo que até então demarcavam o dentro e o fora, o interior e o exterior, o natural e o artificial estão se revelando porosas, sujeitas a todo tipo de vazamento.
O computador permite alargar consideravelmente o campo do “vivo” fazendo “viver” através de simulação determinados sistemas complexos capazes de se reproduzirem,manterem-se, auto-regularem-se e evoluírem. A evolução digital que se desdobrou a partir da cibernética circunscreve um vasto espaço de debate sobre ciborgues, replicantes e outras entidades pós-humanas, inumanas, que estão complicando as idéias ocidentais sobre “o que significa ser humano”. A figura emergente do pós-humano parece ser aquela que melhor corporifica as mutações tecnológicas do corpo em curso.
Qualquer pessoa que tenha sido “reprogramada” para resistir à doenças ou mesmo drogada para pensar; comportar-se e sentir-se melhor, é tecnologicamente um ciborgue. O que torna o ciborgue de hoje fundamentalmente diferente de seus ancestrais mecânicos é a onipresença da informação. O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem qualquer compromisso com a biossexualidade, com a simbiose pré-elíptica. Não está claro o que é mente o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação.
Para Haraway, a escrita é, por excelência a tecnologia dos ciborgues - superfícies gravadas do final do século XX. A política do ciborgue é “a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita , contra o código único que traduz todo o significado de forma perfeita – o dogma central do falocentrismo”.
A antropologia do ciborgue, ao mobilizar, recorrentemente a imagem do ciborgue explorada na ficção científica – consubstancia no par ambivalente velho/novo, não deixa de utilizá-la como estratégia discursiva para legitimar seu próprio campo de saber-poder ao fazer circular um dado regime de visibilidade-dizibilidade sobre as relações contemporâneas corpo e tecnologia.
UMA ESTÉTICA PARA CORPOS MUTANTES
Num contexto de intensas mudanças, em muitos aspectos da vida humana, a metamorfose passa a ser a regra. Nenhuma forma é obtida. O que há é rascunho, traços soltos, experimentos, sombras, indefinições.
O movimento veloz e contínuo faz o indivíduo experimentar e exercitar outros valores: tudo deve estar pronto para o uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea.
A mutabilidade progressiva cada vez mais condiciona e metamorfosea todos os aspectos da nossa vida, sobretudo o nosso corpo. O culto ao corpo está intimamente vinculado ao desejo de modificá-lo, a modificação corporal é parte integrante do processo de mudança que as chamadas novas tecnologias promovem no sujeito e na sociedade.
A promessa fascinante de um ganho suplementar de saúde, juventude e beleza conquistou um espaço inédito nos meios científicos e artísticos, na mídia, em todas as esferas do nosso cotidiano. Aposta-se cada vez mais em qualquer promessa que prolongue a juventude e adie, indefinidamente, a morte, esse mal que deve obrigatoriamente ser postergado.
Em todo o mundo existem centenas de cientistas pesquisando tecnologias para que seres humanos recuperem sentidos ou movimentos, superem limitações e ampliem capacidades físicas e mentais. A idéia é que o corpo da máquina e o corpo do homem se integrem numa nova realidade, que a tecnociência promova intensas confusões corporais entre o orgânico e o inorgânico, o natural e o artifício. As máquinas passam a ser artefatos protéticos, Às vezes celulares, componentes íntimos, partes amigáveis de nós mesmos.
O cientista Kevin Warnick defende a idéia de que como ciborgue nossas capacidades humanas evoluirão tecnologicamente, serão ampliadas, poderemos ter mais possibilidades de memória ou de processamento de informações, capacidade extra-sensorial, habilidade de nos comunicar ou operar máquinas apenas com o pensamento.
Esse corpo ampliado pelas próteses biotecnológicas intui e desenha a nossa super-humanidade. A robótica e a engenharia genética não trabalham separadas, seus produtos e técnicas são complementares. Com elas, a verdadeira questão não é mais a produção do homem artificial, mas a produção artificial do homem. Saímos definitivamente do domínio da pele e entramos nas profundezas do corpo.
Na atualidade, a matéria-prima da Engenharia Genética, muitas vezes, são as células tronco, presentes na medula e, em menor escala, na corrente sanguínea, que tem a capacidade de se transformarem em qualquer tecido.
O corpo se tornou o lugar ideal para todo o tipo de experimento da biotecnologia, investimento da economia de mercado e o principal objeto de consumo no capitalismo avançado.
Na era do capitalismo avançado e da mercantilização veloz do corpo é urgente remodelar a vida, gerar mutantes, programar o futuro genético. No mercado e sob as leis do mercado os fragmentos intercambiáveis do corpo humano geram lucros exorbitantes e aceleram o utilitarismo biotecnológico.
Somente o corpo revisado, corrigido e projetado pelas técnicas, comercializado no varejo, é digno de valor e celebração. Com a informática, a robótica e a engenharia genética, tornou-se tarefa do culto ao corpo aperfeiçoar o material orgânico que a evolução natural legou à nossa espécie.
Sob a lógica do consumo, são deflagrados novos hábitos e comportamentos, onde cada um passa a ser responsável pelo gerenciamento da aparência e dinâmica física e mental, comprometido com fluxos, velocidades e imediatismos, visando resultados praticamente instantâneos.
Essa estética para corpos mutantes ressalta que os velhos determinismos podem ser transformados em determinação livre. Prega uma forma de democracia corporal baseada nas experimentações e modificações promotoras da felicidade. Redesehar-se segundo a ordem do desejo individual e adotar as tecnologias mais modernas, para definir e promover o corpo amado, passam a ser objetivos que resultam na interação do sujeito com o seu meio tecnológico.
OS PERCURSOS DO CORPO NA CULTURA CONTEMPORÂNEA
O corpo canônico é, em essência, resultado de um conjunto de investimentos em práticas, modos e artifícios que visam alterar as configurações anatômicas e estéticas. É o corpo tido e apresentado como desejável nos meios de comunicação de massa, muitas vezes transformado em mero simulacro espetacular da imagem do que seria o corpo ideal.
Para compreender o sentido da corporeidade canônica da cultura de massa é fundamental compreender o percurso do estatuto do corpo no Ocidente até a sua elevação a elemento de culto e investimento de afeições simbólicas, o que permite situar o conjunto de transformações sociais e políticas que possibilitaram a retirada do corpo do lugar de objeto praticamente clandestino e o conduziram ao status de elemento fundador da subjetividade e da identidade na esfera pública. O espaço privilegiado para a análise do corpo canônico é a cena midiática.
A corporeidade canônica é caracterizada como aquela que recorre à adoção voluntária de um conjunto de práticas, técnicas, métodos e hábitos que têm como firme propósito (re)configurar o corpo biológico, transformando-o em um corpo potencializado em seus aspectos estéticos e em suas formas de gênero: grosso modo, homens musculosos e mulheres de seios voluptuosos e curvas definidas. O descortinamento corporal foi, em larga medida, respaldado pelo avanço médico e científico, que contribuiu de maneira decisiva para a exposição do corpo e para a sua transformação em objeto de investimento de técnicas de reformulação.
Órfão dos grandes ideais e das certezas que norteavam a humanidade, o homem é estimulado a voltar-se para o individualismo, para a própria imagem, para o culto ao próprio corpo, último reduto de apego, fidelidade e adoração.
O culto de si constitui um fenômeno de mutação sociológica global, chamado por Gilles Lipovetsky de individualismo contemporâneo, caracterizado por uma nova forma de sociabilidade, regida pelo estímulo incessante de novas necessidades.
Na cultura contemporânea, o que não é desejável quase sempre é assustador. Os corpos são definidos ou alterados pelo efeito do que se diz sobre eles, esse silenciamento sobre os corpos não-perfilados ao projeto canônico cronifica o seu estatuto de dissonante.
Para fugir da mais leve associação com a monstruosidade real, seja via obesidade ou velhice, recorre-se aos cada vez mais sofisticados e eficientes processos visando a construção de um corpo canônico.
O CORPO E A EXPRESSÃO VIDEOGRÁFICA: A VIDEOINSTALAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE UMA NARRATIVA CORPORAL
Os padrões estéticos ditados pelo mundo fashion vão além da prescrição do que vestir, interferindo na construção social do corpo. Vive-se um tempo de extremo inconformismo com o próprio corpo , a tal ponto que a modificação do físico através de interferências cirúrgicas, implantes e mutilações, que só se tornaram possíveis com, o desenvolvimento da alta tecnologia, são ações corriqueiras e banais.
A necessidade de se expor em conformidade com os padrões corporais do momento, busca sua validação em representações de mitos televisivos e imagens que são efêmeras ao extremo, caracterizando assim a obsolência do corpo, que passa a estar em constante necessidade de atualização. Essa corrida por padrões cada vez mais distantes e inatingíveis gera um imenso vazio que potencializa a eterna insatisfação do homem moderno.
O desenvolvimento da performance e da videoarte, em constante diálogo de superação com o espaço, como fuga e reflexão sobre o caráter mercadológico da arte e de toda estrutura, vai se agregar aos muito falares na contemporaneidade, onde o corpo é elemento fundamental, seja pela sua plasticidade ou até mesmo pelo inusitado de suas ações.
O corpo emerge em um período no qual a inquietação de diversos artistas tomados pela idéia da chamada antiarte, desperta novas maneiras de ressignificar a estética e a prórpia definição de arte. O corpo assume um lugar estratégico para a ação artística., aproximando-se da idéia do artista de ser simultaneamente o sujeito e o objeto da criação, comportando um só tema, o artista, o retrato, o seu corpo.
Procedimentos como performances, happenings, ações, body art serviram e servem como forma de testar os limites físicos e morais do “corpo histórico”. Denomino corpo histórico o corpo que se inscreve como lugar de acontecimentos, ou seja, o corpo que é fruto das transformações culturais, sociais, econômicas e estéticas.
Como forma de dar visibilidade às experiências sensíveis e Às mutações que a sociedade industrial produz, a fusão entre arte e tecnologia coloca a experiência do corpo numa dimensionalidade ampliada trabalhando o corpo, os sexos, extraindo o máximo das potencialidades significantes dos novos meios. A videoarte em seus primórdios surge como agente potencializador das performances. Para o homem ocidental, é imperativo não só ter um corpo “aceitável”, mas sobretudo belo. Quem não consegue atingir os códigos simbólicos, metas para estar em conformidade com os moldes vigentes, é excluído, não alcança aceitação e admiração.
Como criticar a moda se ela é o próprio espelho da sociedade e o seu meio? Funcionando como mediadora, a moda, customiza também o corpo. A customização que, anteriormente, era apenas da indumentária, parte para o corpo, penetra na pele, age dentro do organismo.
A perda de identidade motivada pela busca incessante para atingir outros padrões de beleza direciona o homem contemporâneo a uma negação de sua própria herança genética, causando um afastamento crescente dos seus laços familiares, étnicos e sociais. Segundo Baudrillard: “Estamos trabalhando ativamente na “dês-informação” da nossa espécie por meio da nulificação das diferenças”. Percebe-se a desconstrução do “indivíduo”, que passa a estar cada vez mais passivo dentro do seu meio, alheio às informações e às significações de sua cultura.
A utilização do corpo como meio de expressão artística, tende hoje a recolocar a pesquisa das artes no caminho das necessidades humanas básicas, retomando práticas que são anteriores à história da arte, pertencendo a própria origem da arte.
A maneira de expressar-se através da fotografia revelou a dinâmica moderna e suas transformações. Buscou-se compreender e dialogar por meio das imagens, os anseios e descobertas do mundo moderno, onde as relações de uma sociedade pautada em sistemas que tratam de intermediar o tempo e a produção tornam-se evidentes.
Somando a fotografia à criação dos grandes estúdios de Hollywood, nos anos 30 e 40, houve a industrialização do cinema norte-americano, os moldes da modernidade vão estar caracterizados e sendo segmentados, através desta indústria que já se imprimia como uma poderosa máquina. Os ideais de beleza passaram a ser determinados através das telas de cinema e posteriormente com o surgimento da TV, esses vetores tornaram-se cada vez mais mutáveis.
O corpo é uma fonte inquietante e transversal de comunicação, sendo palco de apresentações e de celebrações na cultura ocidental, ampliando o sentido do fazer artístico e trabalhando as potencialidades dos novos meios.
A PERFORMANCE DO HÍBRIDO: CORPO, DEFICIÊNCIA E POTENCIALIZAÇÃO
Pensar a relação entre corpo e máquina, entre sujeito e objeto, e buscar entender de que forma se estabelecem identidades e significados sociais e culturais, que não desfrutam da visibilidade hegemônica, remete-nos a olhar para práticas e fenômenos sociais que, apesar de terem uma inegável dimensão cultural, parecem residir em uma zona de pouca visibilidade e aceitação.
O processo de subjetivação dos sujeitos contemporâneos tem-se pautado na construção de suas identidades assumidas, contida ou abertamente , a partir de um referente considerado “normal”, qual seja, de homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão. As identidades que não se ajustam ao padrão descrito como referência são constituídas como identidades diferentes, marcadas fortemente pela norma.
É difícil negar que, neste momento e nesta cultura, ainda nos enquadramos – a nós e aos outros - em um tipo de identidade a partir de significados atribuídos à nossa aparência corporal.
Os processos de gestão da aparência, de cuidados de si, que inscrevem e reconhecem naquele corpo que não apresenta os mesmos atributos, aquilo que HALL chamou de marcas de diferenciação.
As histórias de corpos diferentes, suprimidos, expulsos dos espaços culturais hegemônicos, remetem-nos a lugares proibidos, ora maculados pela piedade, ora escondidos pelas sombras das forças estéticas da normalidade.
Essa obsessão contemporânea pelo corpo esbelto, de acordo com Soares e Fraga, constituiu-se a partir do processo de industrialização da sociedade nos séculos XVIII e XIX, e estabeleceu critérios produtivos na avaliação da estrutura do corpo, ou seja “a busca da composição corporal equilibrada estava intimamente ligada ao princípio de retidão do corpo e da rigidez do porte”.
As performances destes corpos representados hegemonicamente como desqualificados e ineficientes, na medida em que são significados por diferentes situações “naturalizadas”, evidenciam práticas discursivas intensamente atravessadas pela relação entre corpo e tecnologia.
Para Virilio (1996), as tecnologias são hoje mais precisas e potentes que o corpo humano, muito mais que nossas frágeis aptidões humanas, o que nos garante novas e urgentes possibilidades de performance. Para ente autor, o processo de potencialização se estabelece a partir do instante em que estendemos as capacidades do corpo, utilizando, especialmente, recursos tecnológicos.
Anteriormente se poderia dizer que a tecnologia é uma ferramenta para o espírito agir sobre a natureza que lhe é exterior. Hoje, contudo, ocorre uma internalização da ação da técnica, como se a tecnologia se dobrasse sobre si mesma e se auto-afetasse. É difícil negar que a influência da tecnologia nas sociedades ocidentais tem um lugar capital dentre as questões que emergem como prioritárias nas sociedades modernas.
Para a tecnociência, a carne do homem presta-se a estorvos, está a caminho da obsolência, portanto, a assimilação mecânica, o aditivo tecnológico, ressoa como uma reparação e traduz, na contemporaneidade , o residual digno do que sobrou de sua materialidade biológica.
O atleta portador de deficiência resignifica seu corpo híbrido, investindo nas possibilidades e apropriações tecnológicas potencializadoras, a partir da necessidade de sobreviver, nem tanto à urgência contemporânea, mas principalmente, às rotinas de sua existência.
Devemos olhar para o corpo do atleta portador de deficiência como aquele que promove um borramento de fronteiras. Recortado, maquínico, com deficiência, mas tecnológico, biológico e instrumental, obsceno e monstruoso: um corpo de significados e formas plurais que, interpelado por práticas discursivas, transita pelo território da superação e do limite.
Olá Leandro!
ResponderExcluirBem vindo a mais um módulo da especialização!
Agora você pode aproveitar que seus colegas estão disponibilizando seus endereços, você pode fazer uma lista de blogs e ir acompanhando um a um! Ah, não esqueça de deixar um comentariozinho por onde passa, ok?
Que tal começar falando um pouquinho sobre suas expectativas para este módulo?
Abs